"Avanço do Progresso"

Quarta-feira, 22 de Junho de 2011,  23h13min

Sinto-me desconsolado. Este país foi longe demais! Que cortem nos ordenados da função pública, que aumentem o preço da gasolina, que aumentem o preço dos alimentos e que aumentem os impostos, por mim, tudo bem. Estavam a fazer tudo bem e, assim do nada, estragam anos de trabalho.
Eu bem que via aqueles reclames do “Dia 15 conte com mais”, com um pé atrás. Amigos meus diziam, gozando, que seria para contarmos com um número maior na Sem Chumbo 98 ou para contarmos com mais medidas revolucionárias do governo. Um deles jurava: “Juro-te!” dizia ele “vi na rádio!”. Pois, está bem, mas eu não tinha ouvido nada nos jornais…
Foi então que, nesse fatídico dia, chego a casa de um longo dia de aulas e sento-me na cozinha para o habitual lanche: Dois cachorros-quentes, umas bolachas, tostas, uma ou duas fatias de pizza (e, basicamente, o que houver) e um pouco de refrigerante para desentupir o esófago (viva a Coca-Cola!). Continuo sem saber porque como tão pouco ao jantar…
Ligo a TV, sintonizo para a FOX, para ver a primeira metade de “House”. Todos os dias da minha vida (até uma semana antes) tinha pensado exaustivamente naquele reclame e na sua profecia. Contudo, no dia tão epicamente anunciado por este, haveria de ter sido logo esse dia em que nunca me cruzou o pensamento:
O episódio de “House” vai para intervalo. As letras do canal saltam por tudo o q é sítio para dentro de uma taça de cereais. A ideia de comer cereais passa-me pela cabeça. E é no preciso momento em que vejo que o leite expirou a validade (um presságio?) que passa um anúncio. O anúncio em si é ridículo e ao que dá a entender é do Continente. Até que, a certa altura, o moço que faz a voz-off da publicidade diz que «(…) o Continente juntou-se ao Modelo e (..)». A minha vida passa-me à frente dos olhos. Lembro-me das letras do Modelo de ao pé de minha casa tapadas por um manto de plástico nos dias anteriores. Os neurónios começam a comunicar entre si e é aí que percebo: tenho uma comichão. Mas há também acção a ocorrer noutras sinapses e ideias ameaçam juntar-se e aparecer (e quando isso acontece é sempre perigoso).
Chega o momento. Aquela voz solta as palavras fatais: «Conte com mais. Conte com o Continente». “Conte com mais?”. Acção-reacção. Mal estas palavras são proferidas, perco a minha presença de espírito e deixo cair a fatia de pizza. Tudo começava a fazer sentido, mas não podia ser! De um salto, lanço-me para a varanda. Abro a janela. O meu coração está a cem à hora. Encontro-me na varanda. O suspense é desesperante. E olho para a minha direita… Caio de joelhos no chão. Recupero a minha presença de espírito e passo a palavras o que os meus olhos vêem: “CONTINENTEmodelo”.
Parece que perdi uma parte de mim próprio. Dizem-me que estou a ser parvo, que é a mesma coisa. Não é! Já não vivo ao pé do Modelo. Já não posso dizer que vou a pé fazer compras ao Modelo. Já não me posso sentar na varanda, à noite, a pensar na vida, enquanto olho para o horizonte. Horizonte esse tapado pelas letras do Modelo. O Modelo de Lourel era ponto de referência de indicações e reconhecimento do sítio de onde vivo. Geomonumento dos congelados. Reserva natural dos produtos de higiene. Agora, não existe… Sinto-me destroçado por dentro.
Mem Martins sofreu igualmente com esta conspiração. Visitei depois o CONTINENTEmodelo de Mem Martins e reparei no cartaz do lado de fora: “Bem-vindos aos preços mais baixos de Sintra.”. Estive para procurar um funcionário para perguntar “Olhe, já me fartei de procurar, onde estão os preços que fala aquele cartaz lá fora?”. Não o fiz, é pena…


Por Hugo M. Félix