"Recantos Desconhecidos"

Sábado, 18 de Dezembro de 2010, 02:22

Uma tragédia acaba de se abater sobre a humilde terra de Soure (para quem não sabe, Soure é uma terra situada no histórico distrito de Coimbra).  
Soure. Uma cidade já habituada a flagelos mas que nem por isso deixa de ser nobre. Nobreza essa provada já por um jogo de estratégia para o PC que retrata o ano de 1111, ano da luta entre cristãos e Mouros em Coimbra.
Cidade onde vive o meu avô, que é capaz de telefonar todas as semanas para dizer quem morreu. Que exagero, pensam. Nem por isso, em Soure toda a gente se conhecia, o que não se observa no quotidiano nas cidades modernas e que é lamentável.
Ora, o que vou relatar, bem como o que já disse, é totalmente verídico.
Soure é conhecida pelo seu grande epicentro cultural. E este epicentro não é o seu castelo. Nem a sua anual gastronomia, onde se reúnem pratos, sobremesas, bebidas e outras iguarias, provenientes das diferentes freguesias que constituem este modesto concelho, em três ou quarto dias de alegria, convivência, bom humor e fartura. Nem o seu célebre feriado de São Mateus, santo padroeiro das crianças e da cidade de Soure. Um feriado que tem como costume reunir o maior número de pessoas em Soure durante todo o ano para festejar e ouvir a aclamada banda de Soure. Nem tão pouco o rio, as paisagens, a fauna e a flora que muita gente de bom coração luta para manter saudável e maravilhosa.
Nada disso. Soure tem como epicentro cultural o local mais famoso da terra. O local mais visitado, mais procurado e, por vezes, a única razão de uma eventual vinda a Soure – o café Sourense (mais conhecido como o “Anatólio”).
Pois é aqui, no Anatólio – nome dado ao café por ser o nome do seu dono – que existe, para quem o conhece, a melhor imperial do país. Há também quem diga que os tremoços beneficiam de ex-aequo título, mas tal nunca foi cientificamente provado.
É este café que reunia mais gente para ver os jogos do Benfica que a própria Casa do Benfica de Soure que possui projector e um estabelecimento maior e mais catita que o Anatólio.
É graças a este café que toda a gente se conhece em Soure. Centenas, milhares, dezenas de milhar de noites foram passadas neste café, até altas horas da manhã (tão altas que, por vezes quase que se transformavam em tarde!), onde o povo se reunia e ia sucessivamente mandando vir rodadas de imperiais e tremoços enquanto conversavam ou assistiam às grandes vitórias do Glorioso. Ou aos históricos empates e derrotas, que geravam discussões onde eram apontados dedos aos culpados da fraca exibição encarnada, enquanto simultaneamente era atirado para cima da mesa todo um vasto reportório de nomes e palavrões conhecidos na língua portuguesa fosse a treinador, jogadores, direcção, ou no mais frequente dos casos a, e cito um ilustre Sourense: “Aquele boi de amarelo que devia mas é meter o apito num sítio que eu cá sei!”, seguido de uma vírgula e de um bonito palavrão para terminar tão bonita oração.
Foi neste estabelecimento que bebi a minha primeira imperial. Que comprei os meus 2 primeiros livros da Agatha Christie – Morte no Nilo e Crime no Expresso do Oriente. Dois dos melhores livros que já li, e que me despertaram uma paixão enorme pela literatura. Muitas foram as experiências que tive e as amizades que travei aqui.
Mas o tempo corre não anda, e é ele quem manda.
A Câmara pouco ou nada faz para preservar ou inovar. O castelo está a deteriorar. A gastronomia, afectada pelo comercialismo, apresenta agora preços inadmissíveis e comida de qualidade cada vez mais questionável. O dia de São Mateus já não atrai tanta gente. E para quê? Feiras com carrinhos de choque, carrosséis e farturas gordurosas não são novidade em Portugal. Ciganos a venderem malas “Luís Vitong” e “Carolina Ferreira”; ténis “Didos” e “Naike”; pólos “Lacost” e “Rafael Lourenço” e calças “ Gep” e “Léves” também não são.
E quem, em plena adolescência ou idade adulta com menos de 50 anos, se interessa por uma banda que em vez de guitarras, baixo, bateria, dezenas de colunas, luzes e máquina de fumo (claro) tem ferrinhos, acordeão, reco-reco, pandeiretas e cantar uma senhora com dotes vocais parecidíssimos aos da actriz que fazia de Edith Bunker e um homem com uma espécie de doença terminal nas cordas vocais?!
E o rio… O rio onde o meu pai aprendeu a nadar e que agora ninguém se aproxima com medo que lhe caia a pele. Fauna e flora? Além dos peixes do rio, que já não devem ser muitos, graças aos pescadores, e outros bicharocos comuns e das árvores que maioria já arderam (também o que querem de uma planta como o eucalipto?), que mais há? Mais e mais super e hipermercados, que é o que este país precisa…
A única coisa que Soure se pode orgulhar, além do Anatólio, é duma equipa na 3ª Divisão (se é que se pode orgulhar de tal façanha…).
Mas o pessoal continua a ir a Soure: “Eh pá, ao menos vamos ao Anatólio pôr a conversa em dia!”
Pois o impensável ocorreu. Ao lado desta tragédia, a conquista muçulmana de Soure é uma menina – o Anatólio fechou.
Não estivesse eu a 300km de distância, e não fosse a população de Soure cerca de 20 pessoas entre os 75 e os 120 anos, erguia-se já um dos maiores protestos que a comunidade Lusitana alguma vez testemunhou! Até já imaginava no futuro:
“— Avô, gostava de saber mais sobre a história de Portugal… Dizes-me uma coisa sobre o 25 de Abril?
-- Com certeza, meu rapaz, o que é?
-- Foi tão impressionante como o protesto do encerramento do Anatólio?
-- Ah, ah, ah! Nem por sombras, meu neto, nem por sombras!”


Nota: De notar que este texto foi escrito já há uns meses e que tive recentemente a oportunidade de voltar a visitar Soure e reparar que algumas coisas mudaram e que o café Sourense voltou a abrir, mas com nova gerência. De qualquer forma, o espírito morreu.


Por Hugo M. Félix

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