"Nada de jeito a dizer e esforçar-se para ouvir, é a arte de conversar"

Sábado, 18 de Dezembro de 2010, 22:42

O que dá caminhar numa cidade onde toda a gente se conhece? A capacidade de conseguir demorar 1 hora a percorrer 200 metros e a oportunidade de escutar algumas conversas. Umas das coisas curiosas em que reparei foram as idiossincrasias e teatralidade da conversa portuguesa.
A certo ponto de uma das discussões, uma senhora proferiu o que me pareceu ser o clímax da conversa. Todos se calaram enquanto a senhora, indubitavelmente orgulhosa do que havia dito, virou costas e afastou-se do grupo.
Tudo indicava que tinha terminado a conversa em grande estilo. E é aqui que entra uma inconsciente mas fascinante acção portuguesa: a senhora volta. E diz mais alguma coisa para completar a oração anterior. E aí é que se afasta novamente. De vez? Nem por sombras, volta e remata mais uma frase.
Este vaivém inútil repete-se várias vezes enquanto o resto do grupo assiste em silêncio. E, quando finalmente acaba, o grupo prossegue com a conversa. E a senhora? Continua dentro do grupo, não se ausentou.
Então porquê todo este fingimento da partida se acabaria por ficar?!
Suspense.
O português (aqui representado pela senhora, curiosamente brasileira, mas com vários anos rodeada dos costumes portugueses) gosta de chamar a atenção. E consegue, introduzindo algum teatro nas conversas.
Todavia, este não foi o único exemplo. O exemplo que se segue é um maneirismo da fala. Um “faleirismo” utilizado por muita gente mas que está literalmente incorrecto. Do que vos falo agora é da maneira como o português relata um acontecimento. Numa das discussões reparei numa outra senhora que, segundo me deu a entender, perguntou ao seu marido por que razão o seu carro estava dentro de uma mercearia e não dentro da garagem. E a resposta do marido deverá ter sido algo bem fundamentado do género: “Mas eu não travei o carro?!”.
Essa senhora estava a contar essa tão fascinante história à sua amiga. E escolheu relatar esse confronto da seguinte forma: “ (…) e sabes o que ele me disse, Josefina? Ele disse-me: «Ah e tal, esqueci-me de travar o carro» ”
Nunca, em 16 anos de vida, alguém se dirigiu a mim começando a frase com “Ah e tal…”. Até porque ninguém o diz, a não ser para relatar acontecimentos…
Outros exemplos são os arredondamentos: quando uma pessoa ouve que “o fulano de tal arremessou uma pedra, que atingiu de raspão um polícia e vai pagar uma multa de 64 euros” e depois conta-a dizendo que “um tipo atirou um pedregulho que graças a deus não matou um polícia! Mas acho que agora vai pagar uns 600 e tal euros de multa”. O uso frequente da palavra ‘tipo’; sendo que numa frase de 20, 25 palavras, 12 ou 13 são a palavra ‘tipo’. E a maneira como, nos Trás-os-Montes conseguirem dizer um palavrão a seguir a qualquer vírgula. Entre outros.
Debruço-me agora pelo tema. Os assuntos que são tratados nas conversas. É claro que o “menino” não passa despercebido. Por isso, também me dirigiram a palavra. E a contar com o número de vezes que já me disseram: “Iiiiiihhhh, está tão grande!” ou: “Como ele cresceu!” ou ainda: “A última vez que te vi eras deste tamanho (“este tamanho” sendo por vezes um terço do meu actual tamanho) ”, deduzo que a minha altura seja agora, pelas minhas contas, aproximadamente 8 metros.
Outra pergunta que me colocam de 9 em cada 10 conversas é: “Como é que vai a escola?” ou “E a escola, está boa?”. Eu nunca compreendi esta preocupação com o bem-estar da infra-estrutura. Cabe-me a mim responder da única maneira que satisfaz tanto receptor como emissor: “Vai-se aguentando…”. E infelizmente, assim é…
Como eu tirei esta crónica de conversas que eu ouvi em Setembro, outro tópico recorrente são as férias, onde a pessoa que pergunta onde o amigo passou as férias não podia estar mais indiferente à resposta. Apenas deseja vangloriar-se das suas férias e onde as passou.
Estes e muitos outros maneirismos e expressões tornam a conversa portuguesa extraordinariamente ruim. Não quero com isto dizer que é vil. Mas é, sem dúvida, a mais teatral de todas. Juntem a linguagem gestual e umas poucas palavras ditas com o estalar da língua e temos aqui um verdadeiro tesouro para os futuros arqueológicos Ibéricos desenterrarem.


Por Hugo M. Félix

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